Algo vago


Era frio, sem sol e uma brisa quase cinza vagava por aqui e ali, então ninguém falava coisas felizes ou ria de verdade, porque é difícil, ou talvez impossível, tirar as mãos dos bolsos e colocá-las em cima da barriga para gargalhar quando o tempo fecha pra valer. Era quase como se alguém dissesse ‘hoje não, hoje o vento vai passar o dia todo murmurando coisas enfadonhas nos seus ouvidos, então, rir, nem pense nisso’. E ninguém ria. Se alguém tentasse começar a contar uma piada, era certo que atrairia inúmeros olhares de reprovação.
Mas, apesar de todos os sinais e advertências que o próprio tempo transmitia, ele pegou o guarda-chuva para evitar a garoa intermitente e saiu de casa. As ruas ficavam praticamente desertas nessas condições e já chegava o fim do dia. Seria bom caminhar e olhar para as coisas bobas com os olhos que já vinham se cansando de olhar para as coisas importantes demais, medonhas demais, e conversar com cada uma delas, perguntar como se sentiam passando despercebidas num mundo de percepções tão aguçadas, mas num lugar de sensações tão obtusas. E, se elas dissessem que nem se importavam, que era imprescindível só a saúde, ficaria mais tranquilo.
Sentou-se na calçada, perto de uma escolinha com os muros todos coloridos na rua que ficava na beira do mar. As lâmpadas dos postes já começavam a ser acesas e as luzes das casas por toda parte também, mas ninguém parecia se importar com o que se passava do lado de fora. O vento ainda soprava incansável, mas não chovia, e uma névoa intensa começava a se mostrar de verdade, cinza, mas em alguns pontos era algo como azul. E esses pontos começaram a se concentrar e vir na sua direção. Por um instante pareceu que não parariam até terem engolido o homem na calçada e carregá-lo para a infinitude do azul, mas pararam, e começaram, então, a cercá-lo.
Em outras situações e outras épocas, teria lutado para se libertar, teria levantado prontamente para sair correndo. Só que não agora e não mais. Sentia-se bem, porque aquela névoa parecia ter preenchido algum dos vazios que apareciam cada vez mais dentro de si. Que elas tomassem conta, então. E elas tomaram, sem hesitar e conscientes de todos os caminhos, curvas e atalhos para chegar até aquela sementinha que não queria brotar. Ele não pôde ter certeza se era a sua imaginação afetada trabalhando, mas, a partir do momento que fechou os olhos que não mais conseguia manter abertos, um rosto se formou, no centro de tudo e tomando conta de toda a sua possível atenção. Era um rosto lindo, mas, ainda assim, era um rosto que não tinha detalhes, não tinha traços femininos, sombra de barba ou qualquer outra marca. Era só um rosto, um rosto puro e sem disfarces.
E então ela falou.

“Por que tanto medo? Você teve medo de mim quando cheguei e, agora, tem medo de me perder.”
A despeito de tudo, ele não se sentiu atônito com a súbita capacidade de falar do vento e respondeu com naturalidade.
“Tenho medo de te perder, sim, porque nunca, mas nunca mesmo, nada foi capaz de afugentar toda essa angústia que nem sei de onde vem.”
“Mas você sabe de onde vem. Só não consegue admitir que vai morrer e virar pó antes que alguém ao menos note sua falta. Por que não para de se importar com isso? Não é o bastante poder viver, ter o direito de vir aqui, viver e... morrer?”
“Acho que sim. Mas é tão grande o que a gente vive dentro das nossas próprias cabeças pra simplesmente apagar num bater de botas, por assim dizer. Parece um despropósito.”
“Que seja um despropósito. De qualquer forma, é muito oportuno da sua parte começar a pensar nisso agora que, depois de gozar das coisas que considera boas, sente-se frustrado. E nem comece a falar de deus, não é para isso que vim.”
Agora seria, realmente, a hora de se sentir atônito, mas não se sentiu. Preparou-se para perguntar qual era o motivo, então, por que deus queria que tudo fosse daquele jeito, mas ela estava lá dentro e pôde ler tudo antes que saísse da sua boca. Ele suspirou pesadamente e esperou que ela dissesse quais os seus reais motivos.
“Levante-se e abra os olhos. O que mais precisa para enfiar nesses seus buracos para poder se sentir melhor? Precisa de deus? Precisa da merda do inferno? Espero que, hoje, consiga o que sempre quis. Mas preciso fazer uma pergunta antes de ir. Grandes planos ou algo vago?”
“Eu tenho que escolher um dos dois?”
“Sim, sim. E logo, por favor.”
“Mas eu tenho medo, você sabe que tenho medo. Pressionado assim, vou morrer antes de conseguir responder.”
“Não, você morre depois. É só dizer a primeira coisa que vem à sua cabeça. Foi assim que sempre funcionou.”
Na sua cabeça, não veio uma única coisa para poder chamá-la de primeira, não. Vieram tantas que uma gota de suor pingou da sua testa. Mas a mais forte delas era que tinha vontade de dormir. Decidiu-se, pois.
“Algo vago, então.”
 E a última coisa que sentiu foi um gosto salgado e, de alguma forma, azul, e a inatingível imensidão. Mas sabia que tinha escolhido certo, se houvesse uma escolha certa. Não era mais vazio, não.
Algo vago, então.


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