Pé de goiaba no fim da rua vinte e nove


                Debaixo da luz fraca de um pôr do sol atrasado pelo entorpecimento do horário de verão, ele via passar o vento e ouvia o despertar das luzes artificiais e precoces que antecipavam a chegada da noite na rua vinte e nove de fevereiro. A rua era um daqueles lugares pacatos que a modernidade só veio descobrir – profanar, salvar, mutilar, urbanizar no sentido orgástico – muito recentemente, tanto que se viam coisas como sofisticadas antenas de sinal digital fixadas ao lado daqueles caricatos galinhos que apontam o rumo das correntes de ar lá do alto dos telhados. E ele via tudo isso acontecer à sua volta sentado num toco de tronco de árvore, num corpo vegetal decepado como aquele dele, mas no caso do homem que se sentava, o membro que faltava nunca esteve ali para ser visto; e a árvore que se sentava na bunda do homem não tinha que viver com saudade daquilo tudo que faltava.
                Certa hora passava um rapaz numa bicicleta sem pressa, um gato soturno ou um cachorro ébrio e duas velhas murmurando historinhas ao voltar da igreja – ou quem sabe ir até ela, ou quem sabe até montar uma na porta do inferno, na sala, na boca cheia de bile e mentira -, passavam os minutos e o relógio corria alheio à fome de muitos e sem medo de ser feliz. O velho – porque ele era velho, o homem sentado no toco de tronco de árvore era velho, mesmo que eu não tenha dito antes – observava tudo o que ali tinha a graça misteriosa de acontecer, mas nada o observava de volta, ele que tinha a desgraça viciosa de continuar acontecendo.
                Pegou um cigarro com as mãos manchadas pelo hábito viril de fumar/cagar na própria boca, acendeu com dificuldade, trêmulo, levou até o beiço seco e tragou desejando que aquela fosse a última tragada, expeliu a fumaça sonhando que fosse ela o suspiro eterno do descanso e repetiu pelo menos mais seis vezes o coito entre a glande filtradora do cigarro e a vagina trincada que era a sua boca antes que uma rajada violenta do poder divino arremessasse da posse dos seus dedos arqueados e artríticos para o chão o artefato fumarento. Uma menininha rápida como um blitzkrieg da luftwaffe em seus áureos tempos e forte como um elefante indiano com aquelas tiarinhas na cabeça, ela era a rajada divina, ela, com um tapa, arrancou da mão do velho o maldito cigarro, ou, em sintaxe mais apropriada, arrancou do pescoço do cigarro a mão do maldito velho.
                Ele olhava estupefato, apalermado para a pequena pessoa vestida de rosa dos pés à cabeça e ela olhava de volta, com aquele olhar super expressivo de revolução para sempre, que depois, como todos nós sabemos, viria a ser para sempre jamais. Ela olhou e disse Te vejo todos os dias aqui, sempre sentado à toa e sempre fumando, não tem o que fazer da vida? Já usei estupefato e apalermado, qualquer um desses ainda serve para explicar a cara do velho, que tossiu como um doente e respondeu Tenho, capar os pais de monstrinhos, e ao ouvir uma palavra tão adulta quanto capar, a menina girou nos calcanhares meio agitadinha.
                Espera aí, por que fez isso com o meu cigarro, só pelo malfeito de ver um velho pachorrento desconsertado?
                A menina ficou um instante ainda de costas, quando finalmente se virou com um risinho infantil como devia ser e disse Não, é que eu não gosto de gente que fuma, fumar estraga a vida.
                Como todo excelente velho, ele tinha uma boa resposta. Sabe, monstrinho, a vida é como uma goiaba. Dá bicho tão facinho, mas ainda parece estar gostosa por fora. Você só percebe aquelas larvinhas depois de uma boa mordida, e aí ânsia de vômito não vale de nada.
                A menina foi embora. Para a escola, para a faculdade, para o casamento, para a maternidade, para o leito de morte. E o velho ficou. E sentado no toco de tronco de árvore, resmungou para a goiabeira que é o mundo:
                Eu não quero nada novo, quero morrer da boa e velha morte dos meus pais.

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