A presa que sonha.


Ele entra. Traja uma camisa xadrez, um par de sapatos caros, calça negra como a noite, olhos penetrantes, cabelo desgrenhado; era uma figura curiosa.
Ela já está sentada, ainda não conhece o recém-chegado, há de conhecer em alguns instantes, mas não nos precipitemos. Ela tem na cabeça a ilusão do derradeiro amor, aquele que irá arrebanhar seu coração e irá levá-lo ao espaço; ela sonha com alguém que irá envelhecer segurando sua mão; ela sonha os sonhos do amor de novela; ela sonha, sonha os sonhos que só se realizam no mundo dos sonhos. Ela traja um vestido cor vinho; salto alto, também vinho; não usa bolsa; exibe uma pele tão alva que parece nunca ter visto o sol; exibe unhas vinho, tanto as de cima como as de baixo; exibe um cabelo ruivo, tendendo ao vinho, se isso possível for; exibe um sorriso meigo; exibe belos atributos físicos; atrai todos os olhares, mas nenhum deles será capaz de cortejar a graciosa moça, nenhum deles tem o sex appeal que nosso protagonista tem.
Ele senta, acende um cigarro. Ele segura o cigarro de maneira curiosa, entre o indicador e o médio, mas bem na ponta deles, o que faz parecer que o cigarro está na eminência da queda, mas isto não ocorre; ele segura o cigarro sempre para cima. Traga preguiçosamente. O cigarro é longo, o que torna a visão dele na ponta dos dedos mais curiosa ainda. Embora ainda não a conheça pessoalmente, já fita-a com visível desejo. Ele a deseja no calor de seus braços, na maciez de sua pele, no aconchego da sua cama, na saliência de seus gestos; ele a deseja no calor do sexo; ele não acredita em amor.
Ele não desvia o olhar nem por uma fração de tempo, quem estivesse presente haveria de jurar que nem piscar ele piscava. Dá mais uma tragada. Ela está ruborizada, talvez até um pouco constrangida, mas ele é implacável. Ela finalmente o encara nos olhos. Ele dá tempo dos olhares se encontrarem e depois desvia o olhar, grande jogada. Acabou o cigarro, ele finalmente deixa a guimba escorrer-lhe por entre os dedos. A guimba cai no chão e sua brasa é silenciada pela sola do sapato caro. Torna a olhá-la.
Ela pede um whisky. “muito gelo e dois dedos d’água, por favor” é a solicitação. Ele ouve o pedido, o rosto permanece imutável, pois não pode afugentar a presa, mas seu “eu” se retorce de agonia. Como podia ela beber uma bebida tão fina contaminando-a com “muito gelo e dois dedos d’água”? É ai que se enxerga a dimensão dos problemas do mundo. Se as pessoas não conseguiam nem apreciar uma boa dose de whisky da maneira correta, como se esperar que saibam o que fazer da vida? Continua o belo teatro. Nosso protagonista regozija de ego, “Eu deveria ganhar o Oscar de melhor atuação” pensa ele, “talvez até o de melhor roteiro”, completa.
Ela continua envergonhada com o abusivo olhar, mas sente-se também encantada, pois o autor de seu constrangimento é enigmático e de beleza peculiar; não é daqueles louros altos de cabelos lisos e sorriso de plástico, não senhor, o nosso protagonista tem olhos que parecem ter visto o mundo, tem olhos que, por já terem visto tudo que a vida tinha a oferecer, exibem aquele tédio sedutor. Ela submete-se àquele olhar, passa a desejar que ele se disponha sentado de frente a ela o mais rápido possível.
Nosso protagonista sorri um sorriso cansado, mas só por dentro, ainda não é tempo da bela donzela Vinho saber que nosso protagonista vai ao ataque. Ele já sabe tudo que ela pensa, tudo que ela espera dele, tudo que ela enxerga nele, tudo que ela quer dele. É isso que faz seu sorriso ser cansado. Ser o mais hábil conquistador que os quarenta volumes da história universal já conheceu não lhe é de maneira alguma conveniente, é seu fardo, seu karma, sua maldição, seu infortúnio, sua desventura maior, a causa de seu tédio. Ele esperava que ao menos uma mulher nessa terra lhe pudesse causar a singular alegria da surpresa, do desconcerto da incerteza do ato, do real descobrimento da relação. Não, nenhuma delas, nem um único caso para amostra.
Ele pede uma dose de Whisky. “com gelo?” pergunta o garçom. A este o nosso protagonista não precisa encenar. “quero do jeito que se deve ser, à cowboy”. Ainda com o garçom humildemente curvado a sua frente o nosso protagonista vira a dose que lhe foi servida. O garçom o olha com admiração.
Ela suspira ao vê-lo virar aquela senhora dose.
Ele levanta-se. Dirige-se a mesa de nossa dama Vinho e senta-se sem fazer menção ou pergunta. Ela, que já havia dispensado incontáveis propostas nesta noite, firma-se um pouco envergonhada, mas com um esboçado sorriso nos lábios.
Um de seus pretendentes chutados, já bastante bêbado e indignado com a postura da nossa senhorita Vinho, viu aquele cidadão ignóbil, nosso protagonista, sentando à mesa com o consentimento dela e teve de ficar consternado. Como ele, aquele sujeitinho de merda tinha conseguido tão facilmente se ela fora imune aos teus encantos? Seguiu até a mesa bufando de ódio e cólera, iria arrebentar a cara daquele sujeito e mostraria a ela o que ocorre a mulheres que o trocam por tão pouco.
Nosso protagonista já percebia a situação. Acendeu um novo cigarro. Pela primeira vez pergunta algo, “se importa?”, questiona à moça fazendo menção ao fumo; “não”, ela responde. Cigarro aceso, ele faz algo diferente, passa o cigarro para a mão esquerda. O sujeito chega e segura seu ombro esquerdo com firmeza. Vomitando ofensas e ameaçando Deus e o mundo o ignorante diz ser aquele o último minuto de vida do nosso protagonista. No bar ninguém parece ter se dado conta da situação. Nosso protagonista pressiona o cigarro aceso com bastante força no braço do sujeito, feito isso saca um revólver e descarrega dois tiros rápidos. O bar fica em silêncio, todos se entreolham. O bar volta ao normal. O garçom vem apressado para retirar o cadáver do sallom.
Um pouco de sangue espirra na cara da lady Vinho. Ela esta ofegante. Ele esboça um sorriso e pede desculpas, retira um lenço do bolso e limpa o sangue da fronte da nossa mademoiselle. O garçom, após ter se livrado do importuno cadáver, pergunta se desejam algo. O nosso protagonista pede o de sempre, um novo Whisky à cowboy, duplo, desta vez; ela pede uma marguerita. Ele pergunta se ela sempre vai àquele local, ela responde que sim, o sim sem sal que ele já está habituado a ouvir. Pergunta o que lhe atraia naquele local; ela responde ser a música e o “ambiente underground”. Nosso protagonista exibe seu sorriso mecânico mais belo, com todo o cuidado possível para não esguichar óleo de junta no rosto dela enquanto o faz.
Ela é típica, gosta de músicas da moda e sonha com um homem intelectual, inteligente. Ouvindo tal aspiração ele pergunta a ela quais livros ela tem lido. Ela responde ler apenas umas revistas e vez ou outra um livrozinho desses de bastante circulação. “e quer um intelectual” ele pensa. Ela diz ter gostado bastante da companhia dele. Ele retribui dizendo o mesmo, o grande mentiroso. Gostaria mesmo era da companhia dela no quarto. Nosso protagonista, que já tem outro cigarette na mão, dá uma leve tragada. Essa era a vantagem do cigarro, dava-lhe o suspense da pausa sem precisar parecer que estava indeciso ou sem o que dizer. Solta um longo rolo de fumaça, diz algo dito intelectual; ela suspira e sorri. Ele também. Ela pergunta o que ele faz da vida. Ele responde recitando um poema, ele percebe na cara dela que ela não esta entendendo porra alguma do que ele esta dizendo. Ao final, ela diz ter achado lindo. Ela começa a cantarolar uma música. Ele se contorce de ódio por dentro, essa música era triste, não no sentido literal da palavra, mas, de tão ruim que era, era triste. Se por dentro seu espírito retumbava, do lado de fora nada de diferente se manifestava. Ela começa a cantarolar olhando para ele como se tentasse seduzi-lo. “que merda”, ele pensa. Ele dá à moça o que ela deseja. Os dois se beijam, um beijo longo e, para ela, terno e sedutor, para ele, primeiro passo da aquisição.
Pronto. Agora não tem mais volta, ele conseguiu. Ela já é dele.
Ela crê nele como o homem dos céus, como o cavaleiro medieval de seus sonhos, como o príncipe da linhagem mais pura, do pedigree mais refinado. Ela quer ser dele. Mal sabe ela que também é isso que ele quer.
Pauso a narrativa neste momento para ensaiar sobre este típico fato da relação menos afetiva e mais carnal. Normalmente, em situações como esta que vos sirvo, a mulher sabe o que o homem deseja, e ela, não obstante, deseja o mesmo, mas ele nada pode dizer, pois se disser, vai soar vulgar aos ouvidos dela, ela se sentirá ofendida e o chamará de grosso. Pormenores que poderiam facilmente ser dispensados e que, sem eles, o mundo se veria bem melhor.
Então ela, após o beijo, como que para emendar um assunto que julga perfeitamente conveniente à situação, pergunta se ele viu a novela de ontem; e, como se a resposta fosse óbvia, começa a falar da moça desejosa que tinha dois caras que a disputavam e ela se via indecisa na escolha entre o amor dos dois.
Ele esboça um sorriso, o blefe serve para estas coisas. Ele nunca havia visto tal produção televisiva, mas soube exatamente o que responder, uma vez que estes roteiros mamão com açúcar são os mais previsíveis dos que se tem notícia.
Ela encara o “diálogo” como um diálogo, onde ele está expondo seus pontos de vista em detrimento aos dela. Ele sabe que não é assim, porque, no fundo, ela não deseja ser contradita, ela acha que quer alguém que tenha algumas opiniões não muito exatas em relação às dela, mas ele sabe que não é assim, ele sabe que ela deseja mesmo é alguém que a escute até ela se cansar de falar e, enquanto isso, fique com um sorriso meigo na cara.
Feita a convenção da conversa casual, ele beija-a novamente, desta vez de forma mais incisiva. Apalpa-lhe as partes, ela está ofegante, ele pressiona seu corpo contra o dela, ela está ofegante, ele direciona a mão dela ao afago, ela está ofegante, ele mostra que a deseja, ela está ofegante, ele a chama para um local mais reservado, ela está ofegante e concorda com os lábios intumescidos e a fronte ruborizada .
***
Na manhã seguinte ela acorda no motel barato que escolheram por suposta falta de opção. Acorda sozinha. Nenhum bilhete nem nada. As juras de amor eterno de ontem à noite lhe soaram tão verdadeiras, o olhar dele era tão tenro. Nada era real, era tão falso quanto uma nota de 6 reais. Ela chora bastante tempo. Nem o dinheiro para o pernoite ele deixou. Depois de chorar, cochila um pouco e volta a sonhar com o príncipe encantado intelectual e charmoso que virá tirar-lhe desse mar de amargura.
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Ps: Desculpem o atraso do post, tive problemas com a Internet.
PPs: Boa sorte a todos que irão fazer o vestibular da UFG amanhã!

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