Resenha de Memórias de um Sargento de Milícias


As memórias às quais se referem o título da obra são, como é bem sabido, de Leonardo, um típico carioca de vida fácil e hábitos questionáveis segundo a “moral” e os “bons costumes”.
Nota-se uma certa nostalgia - traço romântico - do autor, Manuel Antônio de Almeida, da época em que a monarquia lusitana regia o Brasil (“Era no tempo do rei...”), seja pelo tradicionalismo ou pela pompa dos eventos e das cortes monárquicas. Mas não é feita de apenas melancólicas reminiscências a obra única de Manuel de Almeida. Percebe-se também uma frequente ironia com a qual o autor trata das personagens, evidenciando os podres dos clérigos, do sistema judiciário, dos moralistas conservadores, ciganos e vagabundos. E é justamente essa a característica que diferencia as Memórias do usual romance da época, junto com a sua linguagem simples e até coloquial, em certos momentos.

As personagens, por sua vez, fogem das cartilhas românticas:


Leonardo (o filho) é, quando criança, um delinquente endiabrado e, conforme envelhece, mostra-se um vagabundo inconsequente, ingrato e infantil; apesar de protagonista na história, quase nunca fala, não apresenta complexidades psicológicas e porta-se alheio a praticamente todos os acontecimentos importantes, excetuando-se, é claro, suas levianas e injustificadas diabruras; fora tais “atos heroicos”, todo o resto da sua vida é decidido por terceiros.
Leonardo Pataca, pai da protagonista, é meirinho (uma espécie de oficial de justiça a quem não se dá grande estima), imigrante português e um tonto deslumbrado para assuntos amorosos. Passando por desventuras com Maria da hortaliça (com quem, depois de uma “pisadela e um beliscão”, tem Leonardinho) e uma tal cigana (que o abandona para ser concubina de um homem do clero), Pataca acaba por casar-se e formar outra família.
Major Vidigal é a autoridade policial que mantém a justiça e a paz com afinco considerado tirano por alguns. É dele que tentam se esconder todos marginais, mas é também pelas mãos dele que estes são reformados; incluindo nessa categoria, de reformados, Leonardinho.
A comadre é a parteira que trás o filho de Pataca e Maria da hortaliça ao mundo. Ocupa-se de picuinhas e fofocas a respeito da vida alheia e, ao longo de toda a história, conspira a favor de Leonardinho, como no caso de arranjar o casamento deste com Luisinha.
O compadre, vizinho dos pais do protagonista e por isso instituído seu padrinho, é barbeiro e deve sua pequena fortuna à falta de escrúpulos ao furtar a herança que um marinheiro o havia encarregado de passar aos devidos herdeiros. Quando Maria da hortaliça trai Pataca e o abandona, o compadre é o encarregado de criar o delinquente ainda bem menino e, ao morrer, deixa todas as suas posses para esse seu afilhado, então já jovem.
Luisinha, primeiro amor de Leonardo, não tem nada da febril, doce e delicada alvura das donzelas românticas. É, na maior parte do tempo, sonsa e apática e um pouco feia. Não mostra ter sentimento recíproco ao do Leonardo no início, mas, depois de um mal sucedido casamento arranjado do qual sai viúva, vai atrás do rapaz para ajeitar-se.
Vidinha, morena sensual e desenvolta, é quem atrai a atenção do rapaz depois de sua primeira desilusão com Luisinha. Não é o que se chamaria de recatada e vive cercada de homens a cortejá-la. Por causa de um dos seus ataques de ciúme, leva à prisão Leonardo.
O livro é dividido em duas partes, cada uma com vinte e poucos capítulos. A primeira trata do que se dá durante a infância de Leonardo; nela o protagonista é tratado como baderneiro irremediável e que sempre se arruma pela sorte e pela influência daqueles que a ele se afeiçoavam. A segunda trata do que se dá durante sua juventude e início da idade adulta, quando desperta seu interessa pelas mulheres e em razão de alguns atritos com o Vidigal e ainda devido à influência da comadre consegue o bom posto de Sargento, casa-se e parece criar juízo.
 Vale notar que Leonardo, apesar de uma vida inteira de inconsequência, irresponsabilidade e nenhuma reabilitação, no fim, torna-se um “bom sujeito”, na mais completa lisura, e amadurece. Embora várias pessoas tenham tentado colocá-lo no caminho certo (o padrinho, querendo-o padre; a comadre, querendo fazer com que estudasse; D. Maria, insinuando que podia ser advogado; o Vidigal, fazendo-o granadeiro), só o tempo e seus sentimentos amorosos puderam surtir efeito. Prefere Luisinha, moça tímida e de família tradicional, à Vidinha, linda e de prazeres mundanos. E até decide ter o cargo rebaixado para poder casar-se (tornando-se, então, Sargento de Milícias).
Por tudo isso, esse fim redentor e o amadurecimento natural da personagem evidenciando os podres dos cl das personagens. ), é perceptível uma grande semelhança entre as Memórias de um sargento de milícias e Laranja mecânica, romance de Anthony Burgess. Tornado clássico com a adaptação para o cinema, o livro apresenta Alex, jovem transtornado que pratica violência gratuita até ser capturado pelas autoridades, que só encontra uma resolução dentro de si mesmo e não nas tentativas de outros, nem mesmo numa lavagem cerebral.
           "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida, foi lançado originalmente sob a forma de folhetim, em "A Pacotilha" - o suplemento literário do jornal "Correio Mercantil", do Rio de Janeiro, entre 27 de junho de 1852 e 31 de julho de 1853. Só nos dois anos seguintes se transformaria num livro, publicado em dois volumes.

Um comentário: