O lado de cá

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Querida K.,

Por este lugar perdido, bem longe de mim e perto do mar, que consegue ser mais imenso, você perambula fingindo ser indomável a escrita só para se atrasar com suas cartas que nunca vêm. Apesar da real distância desta estrada inexistente pela qual nossos carros que ainda nem temos dirigem para nosso primeiro encontro, mas não matando as esperanças, pois há de vir o dia em que me verá e surgirá a dúvida se será mesmo o mar da encosta ao horizonte maior do que eu dos pés aos fiapos de cabelo, bem, apesar disso e mesmo com este fuso inteiro a nos impedir contato nada me impede de tê-la por amiga. E tê-la assim, amiga, só o percebi quando me pus a procurar coisa que aqui já me falta para completar os caquinhos colados da xícara que no segundo seguinte desta distração vai cair. Ou coisa que aqui já me falta e não identifico que coisa é, se ainda é, porque basta um pouco de experiência para saber de tudo o que nosso fundo de alma ainda não admite e essa coisa indefinida ganha forma em saudade, portanto já não encontramos o caco que terminaria de montar a xícara.
Encontre-me onde o guarda-roupa termina no lampião, cá não reinamos nada, só convivemos com este erro humano de pretender ter importância, ao contrário do que somos daquele lado, você como uma filha de Eva e eu como um filho de Adão, um erro maior ainda, que beira as marcas de cordão umbilical, os buracos umbigos, encontradas nas representações de nossos pais por esses pintores que se achavam da renascença, mas que os julgo, por tal defeito, meros surrealistas; ou então é só vaidade minha. Daquele lado seríamos ainda crianças se questionando se seriam as angústias românticas, exames difíceis, ideias de faculdades, medicina e jornalismo, tudo isso somente sonhos maus de uma vida a que não nos pertence. E a conclusão seria: sim, nunca nos houve este passado.
Quem me dera poder sair desta realidade que não passa de minha intensa áurea melancólica, fortalecida a cada vez que encosto a cabeça no vidro da janela do carro, voltando para casa de algum ambiente onde com certeza tive uma estadia entediante. É sempre noite, a janela sempre fria, os fones de ouvidos sempre vibrando canções tristes, meus pensamentos sempre voltados a tentar quebrar meu drama, que não é um drama adolescente, o fato de estar na adolescência é só um acaso. É sempre noite quando eu tenho medo de receber meus envelopes por correio e me apanhar na paranoia de conversar com uma K. que sou só eu K., o K., e não existir nem sombra das outras letras do seu nome. À noite, como se do lado de lá eu tivesse sido enfeitiçado igual às moças princesas de dia, mas cisnes, ogros, sapos, após o ir do sol, à noite retiro minhas camadas finas de pele e deixo a nudez de uma sensibilidade incrível. Dói até o toque da luz. Ainda minhas vozes pensantes, de dentro de meu cérebro líquido, são mil cilícios pelo corpo todo. Chego em casa qual a capa do batman, despejo de minha tina essas agonias que vê nesse desenho anexo.
O que segura a sombrinha deve ser observado primeiro, ele é grande, estava mais perto da lente, se fosse fotografia, mas claramente não é, por causa de um elemento que tira a realidade da gravura por inteira: os pés descalços do único descalço estão trocados. O resto é um tanto parecido com as circunstâncias, tanto que a distraída crítica de arte, que comete o erro de se achar importante bastante para vir-me dizer do bom e do ruim e dos pés que pus trocados, vai dizer que meu desenho se enquadra no rol de obras do realismo naturalismo parnasiano ultrarromântico. Mas não se preocupe com isto, K., que já vou eu mostrar minhas reclamações, pois real há por todo o retângulo, mas não naquele corcunda ali que segura uma flor e vai andando com o pé direito no lugar do esquerdo e o esquerdo no lugar do direito.
 Escreva logo, antes que se torne verdade uma coisa estranha que me passou pela cabeça. É que acho que tem uma bruxa de chapéu pontudo no meio de um abraço nesse desenho. Não. Só impressão.

Seu amigo K.

Um comentário:

  1. o traço do Kaito é simplesmente indescritível. É a abstração mais concreta que eu já ví.

    Ficol Foda! õ/

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