UMA PRAIAZINHA DE AREIA BEM CLARA, ALI, NA BEIRA DA SANGA

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            Fechei a porta, encostei a parte de cima da cabeça contra ela. Só nos filmes as pessoas fazem isso, nunca vi ninguém fazer de verdade. Comecei a fazer para ver se sentia o que as pessoas sentem nos filmes - pessoas sempre sentem coisas nos filmes, nos bares, nas esquinas, nas músicas, nas histórias. Nas vidas acho que também, só que não se dão conta. Depois percebi que aquela dor que sobe ali do olho esquerdo pela testa diminuía um pouco assim, então fui me virando até apertar o lado esquerdo da cabeça, justamente onde doía, contra a porta fechada. A dor doía menos assim, embora não fosse exatamente uma dor. Mais um peso, um calafrio. Uma memória, uma vergonha, uma culpa, um arrependimento em que não se pode dar jeito.

            Eu estava de costas contra a porta quando olhei pela janela aberta do outro lado do quarto. Então pensei que bastaria uma corrida rápida da porta até a janela, depois um impulso mínimo para jogar meu corpo por ela e plac! ó, pronto, acabou: moro no décimo andara. Não foi a primeira vez que isso me passou pela cabeça. O que me segurou desta vez, como me segurava em todas as outras, foi pensar naquele monte de latas de lixo lá no térreo. Meu pequeno corpo, cheio de pêlos e músculos duros, cairia exatamente sobre elas. Imaginei uns restos de macarrão enrolados nos anéis do meu cabelo crespo, uma garrafa vazia de pinga vagabunda no meio das minhas pernas, um modess usado na ponta do meu nariz. E continuei parado. Tenho horror à idéia de ficar sujo, mesmo depois de morto.

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(Caio Fernando Abreu)

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