Frederico Pacência - Mário de Andrade

               Frederico Paciência… Foi no ginásio… Éramos de idade parec
ida,ele um pouco mais velho que eu, quatorze anos.

               Frederico Paciência era aquela solaridade escandalosa. Trazia nosolhos grandes bem pretos, na boca larga, na musculatura quadra-da da peitaria, em principal nas mãos enormes, uma franqueza,uma saúde, uma ausência rija de segundas intenções. E aquelacabelaça pesada, quase azul, numa desordem crespa. Filho deportuguês e de carioca. Não era beleza, era vitória. Ficava impos-sível a gente não querer bem ele, não concordar com o que ele falava.

               Senti logo uma simpatia deslumbrada por Frederico Paciência, meaproximei franco dele, imaginando que era apenas por simpatia.Mas se ligo a insistência com que ficava junto dele a outros atosespontâneos que sempre tive até chegar na força do homem, achoque se tratava dessa espécie de saudade do bem, de aspiração aonobre, ao correto, que sempre fez com que eu me adornasse debem pelas pessoas com quem vivo. Admirava lealmente a perfei-ção moral e física de Frederico Paciência e com muita sinceridadeo invejei. Ora, em mim sucede que a inveja não consegue se resol-ver em ódio, nem mesmo animosidade: produz mas uma compe-tência divertida, esportiva, que me leva à imitação. Tive ânsias deimitar Frederico Paciência. Quis ser ele, ser dele, me confundirnaquele esplendor, e ficamos amigos.

               Eu era o tipo do fraco. Feio, minha coragem não tinha a menorespontaneidade, tendência altiva para os vícios, preguiça. Inteli-gência incessante mas principalmente difícil. Além do mais, na-quele tempo eu não tinha nenhum êxito pra estímulo. Em famíliaera silenciosamente considerado um caso perdido, só porquemeus manos eram muito bonzinhos e eu estourado, e enquantoeles tiravam distinções no colégio, eu tomava bombas.Uma ficou famosa, porque eu protestei gritado em casa, e meu Pairesolveu tirar a coisa a limpo, me levando com ele ao colégio.Chamado pelo diretor, lá veio o marista, irmão Bicudo o chamá-vamos, trazendo na mão um burro de Virgílio em francês, igualzi-nho ao que me servira na cola. Meio que turtuviei mas foi um na-da. Disse arrogante:

                - Como que o senhor prova que eu colei?!

               Irmão Bicudo nem me olhou. Abriu o burro quase na cara de Papai, tremia de raiva:

               - Seu menino traduz latim muito bem!... mas não sabetraduzir francês!

               Papai ficou pálido, coitado. Arrancou:

                - Seu padre me desculpe.

               Não falou mais nada. Durante a volta era aquele mutismo, nãotrocou sequer um olhar comigo. Foi esplêndido mas quando ocondutor veio cobrar as passagens no bonde. Meu Pai tirou com toda a naturalidade os níqueis do bolsinho mas de repente ficouolhando muito o dinheiro, parado, olhando os níqueis, perdido emreflexões inescrutáveis. Parecia decidir da minha vida, ouvi, che-
guei a ouvir ele dizendo “Não pago a passagem desse menino”.
               Mas afinal pagou.

               [...]

               (Mario de Andrade. "FREDERICO PACIÊNCIA", in Contos Novos).

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