Um fim de mundo que começou num vaso de flor

Clique para ampliar 


Por que um cristal?
A textura. Ele é liso como céu. Ele é frio como céu. Você olha dentro dele e pensa ver o céu.
Um céu bem pequeno.
Ninguém sabe quantos mundos têm aí dentro.
Eu acho que tem como saber o número.
Exatamente?
É.
Como?
Contando seu nível de loucura.
E como é que conta um nível de loucura?
Pela altura que se pula.
E se eu te dissesse que pulo tão alto que voo?
Aí eu diria que existem bilhões de mundos dentro do seu cristal. Ele é até legal. Sabe, o formato e tal. Um bacilo. Só não sei por que que você anda com um naco de pedra ao invés de uma carteira no bolso.
São as coisas, cara.
As coisas poderiam ser um pouco mais normais. Aquele fio que sai do poste tem tantos remendos e é velho; queria que fosse trocado. Fico incomodado de saber que na próxima chuva, quem sabe, a energia vai cair por causa de um rompimento bem naquele ponto. No que eu aponto. E aí, com quem eu vou conversar? Até da energia a gente, eu, você e os mundos todos, depende pra se falar. E se eu ficar sozinho por um dia inteiro?
Sozinho me dá arrepios. Essa palavra. Ela é má. O diabo deve dizer isso pra chicotear os ouvidos de quem mora no inferno. Quando restar mais pessoa nenhuma na Terra, por causa do apocalipse, e eu ainda ficar aqui, por causa dessa carapaça de azar, vou mudar de malas nas costas pra algum planeta aqui dentro.
Dentro do cristal?
Sim. Sim. Nas profundezas do cristal.
Mas não teremos apocalipse. No máximo, queda de energia causada por esses pedaços de fios que ninguém troca. Quando crescer, vou financiar os vândalos da noite para roubar a fiação dessa cidade pra que coloquem uma nova no lugar. É. Eles serão ricos, porque esses fios são recheados de cobre.
Cobre não vai ter valor. Vai ter valor só um pedaço... de abraço. Quando o apocalipse se achegar a nós, vamos imitar os pinguins do gelo: vamos nos sentar bem perto uns dos outros pra nos esquentar.
Pena dos pinguins.
Eu sei: no fim da história vamos nos esquecer de que foram eles que inventaram esta aproximação natural para não mais morrer... de solidão. E vamos ver os documentários sensacionalistas sobre aquecimento global exclamando: vejam só os pinguins nos imitando, já são quase homens.
Isso mesmo. Mas não vem, não, não.
Quem?
O apocalipse. Isso é coisa de bíblia sagrada, efeitos caóticos, de borboletas, de nostradamus. É mentira. E uma mentira muito poderosa.
Quem disse?
Eu. Ela é poderosa porque é daquelas que tem a ver com o fim. Não o fim de tudo, ninguém consegue imaginar um tudo para sequer sentir falta, e sim o fim dos pequeninos... sentimentos finos: amor vivido, amor cantado, amor platônico, amor resumido, amor de irmão, amigo, namorada. Isso dá medo. Isso faz gente rezar. Sabe que começo a achar que é por isso que você está com esse cristal?
Que nada. Não amo nada para poder temer uma perda.
Então me explica, só tive rodeios e rodeios por resposta. 
O cristal caiu no meu telhado numa noite de chuva de meteoros, ele veio lá do céu e me disse: vem o fim em apocalipse. Desde então eu tenho essa pedra no bolso, para olhar e admirar. Ela é só minha e, segredo, é tudo que eu tenho para amar.
Cuidado na forma que ama isso aí.
Filho da puta, que sem graça. É um assunto sério, se o tive por rodeios foi pra não vir o desespero. Vai tudo acabar, cara. Tudinho, menos eu. E tão rápido, que o que nos separa do fim é um tempo que cabe até num giro de relógio.
Você tá com medo?
Muito.
Pelo menos o povo não vai ter tempo pra imitar os pinguins e eles vão se salvar. É por isso que você trouxe mala? Você vai mesmo se mudar pra algum planeta aí dentro do seu cristal, não é?
É.
Como vai ser? Bomba nuclear?
Não, vai ser assim: vamos ficar com sono, vamos cair no chão, vamos dormir. Todos. Mas só eu vou acordar. Vou acordar, olhar e perceber que tô sozinho.
Essa palavra.
Eu sei.
Dói como o céu.
Não é?
Agora existem infinitos mundos dentro do cristal. Porque você está infinitamente louco.
Piada não tem efeito, esse medo dá anestesia.
Segura isso aqui.
Uma mão?
A minha. Feito pinguim.
Brigado.
Uma pergunta: os bocejos sempre vêm antes do sono? Sempre?
Sempre. Pra substituir a ordem de boa noite num beijo... um bocejo, sempre, sempre. Por quê?

2 comentários:

  1. "Não, vai ser assim: vamos ficar com sono, vamos cair no chão, vamos dormir. Todos. Mas só eu vou acordar. Vou acordar, olhar e perceber que estarei sozinho." Imaginei o suicídio em massa induzido por aquele religioso psicopata, vc despertando e observando centenas de corpos ao redor.

    ResponderExcluir