Pós-zumbis 4ª Temporada (7)


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Jogos de gato e rato

                E Fronrel começou a se armar. Tinha fé. Sabia que o mundo era como era por injustiça, por um desequilíbrio entre o saber dos que ordenam e dos ordenados, por uma patifaria, uma trapaça, uma descortesia que há muito se perpetuava e que, se dele dependesse, teria fim.
                Se conseguisse, poderia ajudar seus amigos, poderia fazer as coisas direito.
                Foi ao ar o seu primeiro discurso televisionado. Ele estava no estúdio, dois polícias, longe do foco das câmeras, mostravam-lhe os pulsos firmes nos coldres das pistolas, dando a entender que ele fizesse o que tinha de fazer e não tentasse nada de engraçado. “1...2...3... NO AR!”. Por um instante o silêncio, Fronrel olha fixamente para o olho de vidro à sua frente, dá um leve pigarreio e profere:
                _ Como todos devem saber, sou Fronrel. – uma ligeira pausa para deixar o anúncio um tanto solene - Um de vocês que foi acusado por um único crime, tentar descobrir a verdade. Fui acusado por tentar entender porque tão poucos têm tanto enquanto os que realmente produzem a riqueza não têm nada. Fui acusado por tentar entender esta indústria que é a informação, essa manipulação que nos fazem, esse teatro do qual somos fantoches. Sei que sentem o mesmo, por isso venho aqui não para pedir que se matem por mim, nem que invadam as ruas, mas que enxerguem o que lhes é imputado, que enxerguem o que lhes é posto à força. Venho aqui para dizer que nesse momento, talvez um dos piores que já vivenciamos, onde não podemos nem nos dar ao luxo de sorrir às nossas famílias, pois temos de estar a todo tempo produzindo para estes que não nos dão nada em troca, senão migalhas. Peço-lhes que atentem para esta realidade, peço-lhes que olhem ao poço em que chegamos, ao fundo dele. Somos nós, nós é que permitimos que tudo isto chegasse até aqui, é hora de voltarmos a poder sorrir, é hora de voltarmos a ter tempo para chorar uma dor que aflora no peito ou uma alegria que aquece nosso âmago. É hora de voltarmos a ser Homens, é hora de voltarmos a ser humanos.
                E assim foi.
                Nas ruas, nos telões onde a transmissão ocorreu, via-se que alguns zumbis contemplavam o indivíduo que vos falava de forma ligeiramente curiosa; os policiais que faziam a ronda, logo após o final do discurso, começaram a constringir os zumbis para que estes voltassem ao trabalho ou a suas casas. Assim o fizeram, ligeiramente contrafeitos, ligeiramente conformados, como usualmente o é.
                Fronrel estava um pouco desgostoso, pensava que talvez devesse ter se preparado melhor. Mas o feito feito estava, de modo que se contentou em lembrar que tinha seis meses para promover a campanha.
                Passou-se um mês, neste um mês teve quatro discursos na tevê, opção própria, não queria saturar a própria imagem de modo a fazer a opinião publica ficar desgostosa; fez também quatro audições no rádio e duas aparições nos jornais.  
                Um mês preso. Tendo apenas acesso à tevê, durante seu horário de discurso; ao rádio, idem; e a um recorte de jornal, que continha seu texto, contendo também a data.
                Fronrel já estava maçado, já se sentia desmotivado. Até que naquele dia, talvez por algum descuido de seus algozes, ele viu a perspectiva da mudança.
                Antes de prosseguir, para que entendam, explico-lhes como funcionava o acesso de Fronrel às provas de que seus discursos eram transmitidos integralmente e no tempo correto. Havia em sua sala uma tevê, um relógio e um rádio. Eram fabricados àquele propósito, ou então adaptados, pois não tinham botão algum. Fronrel nunca ligava ou desligava a tevê ou o rádio. O relógio lá estava para mostrar a Fronrel que os discursos estavam a ser passados na hora em que se havia combinado. Eles ligavam sozinhos no horário em que a transmissão de suas tentativas ocorriam e desligavam logo em seguida, automaticamente.
                O discurso do dia era um pelo qual Fronrel não sentia muito orgulho, estava ligeiramente desmotivado no dia em que o gravou, de modo que, no horário previsto, a tevê ganha vida e sua imagem e voz são reproduzidos na tela. Fronrel ouve tudo desinteressadamente, os argumentos, a entonação vocal, as frases de efeito e os “caráteres” normativos da estrutura do discurso. O encerramento. E foi isso, nada de novo. O que deixava Fronrel contrafeito era justamente a falta de tato quanto ao impacto de suas manifestações. E eis que, talvez por milagre, uma falha ocorre. Alguém se esqueceu de desligar a tevê, começa um noticiário.
                “Boa noite. Começa agora o Jornal ###. E vamos as manchetes...”
                Um blá blá blá que não interessava a Fronrel, até que ele falou de um grupo de baderneiros que haviam, alegando protesto, ocupado alguns pontos estratégicos na cidade de Brasília, Capital Federal.
                “Mais informações logo após os comerci...”
                A palavra sofre o corte, o milagre desbotou. A tevê voltou ao seu estado majoritário, o silêncio.
                Fronrel via germinar em si a crescente comoção. Não sabia o que tinha acontecido, mas sabia que algo tinha acontecido, e para ele isso bastava. A priori, não interessavam proporções astronômicas, mas toda manifestação é uma manifestação. Bastou isso para que Fronrel já esperasse com outros ares a próxima gravação.
                No outro dia vieram chamar-lhe. Algemaram-no, encapuzaram-no e levaram-no ao mesmo homem que o julgara.
                _ Bom dia, Sr. Fronrel.
                _ Bom dia, Juiz.
                _ Não, Sr. Fronrel, aqui sou somente o administrador, o gestor, por assim dizer.
                _ E também Juiz?
                _ Ora, não seja ingênuo. Sabes muito bem como as coisas se dão hoje. Sim, sou gestor, é natural que interfira vez ou outra no jurídico para fazer prevalecerem meus interesses. Mas não é sobre minhas ações que vou tratar contigo.
                _ E que queres?
                _ Pode me crer como um homem de valores dúbios e amarga lábia, mas tenho palavra. Conferi-lhe seis meses de “campanha”, nos termos que aceitaste de bom grado. Quero apenas saber tudo tem corrido conforme nosso acordo, algo lhe desagrada?
                Fronrel analisou a pergunta por alguns instantes. Era demasiado interesse para alguém que não precisava fazer sala para Fronrel, na verdade o contrário seria mais plausível. Mas ponderou que, talvez, a pergunta pudesse ter a ver com uma possível justificativa de obstaculização da campanha. Talvez ele quisesse uma vitória incontestável, apenas isso. Por um momento Fronrel pensou na televisão que havia se prolongado em sua programação no dia anterior, mas não levou isso em conta.
                _ Sim. Tudo indo muito bem.
                _ Ok então, pode voltar à sua cela.
                Fronrel, ao se virar, pensou ter visto um leve sorriso no rosto do seu adversário, mas não tinha certeza.

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