Desafio "Narrativa Retalhada" - Parte 5/5 I

Primeiro pedaço do finale da estória de Grégore Trévor.
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A segunda - e última - parte vai ao ar nesse domingo.

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                                       O final de Grégore Trévor, primeira parte

A tarde talvez fosse azul. Estávamos descendo a toda velocidade uma deserta avenida – curiosamente deserta, já que se arrastava solene no céu o iminente crepúsculo. Eugênio dirigia com uma expressão transfigurada no rosto, algo como obsessão, ódio e excitação digladiando-se para tomar conta da sua expressão facial. Eu me agarrava com força ao meu livro e à alça de segurança presa logo acima da minha cabeça. Reservei alguns instantes para registrar a aparência do homem ao meu lado: camisa branca de algodão desabotoada no topo de modo que grossos pelos negros eram visíveis no seu peito, calça jeans clara um tanto surrada, sandálias de couro como as de um espartano e longos cabelos ondulados e oleosos. De alguma forma a minha primeira impressão de que aquilo não era um homem se esvaía da minha mente confusa, assim como a rigidez dos meus músculos me deixava gradualmente.
“Por que não me diz aonde vamos?” perguntei, apertado contra a porta do passageiro e encarando o motorista ensandecido.
“Porque você não entenderia. Garanto que há várias coisas nessa vida que são mais suportáveis se ignoradas” disse Eugênio em sua voz profunda, mas rouca como a de alguém que gritou a plenos pulmões instantes atrás, e continuou, “Afinal, o que diz esse livro?”.
“Ainda não tive oportunidade de ler” respondi, mas emendei antes que sua insatisfação pesasse mais ainda o pé sobre o pedal de aceleração, “Por que esses ‘pseudo-escritores’ roubariam um machado? Simplesmente para argumentar o nome...”
Essa frase foi interrompida violentamente quando algo – um carro, presumivelmente – acertou o lado de Eugênio num cruzamento. A soma vetorial da colisão levou-nos para fora da pista e para o meio de um lote baldio com mato alto. Eugênio estava inconsciente ao meu lado, mas sem vestígios de sangue. Abri a porta com um solavanco e saltei para fora. Estava tonto, nauseado; meu corpo tremia febrilmente em meio a espasmos; vomitei; bílis e água. Meu deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era deus? Antes que perdesse mais uma vez os meus sentidos e outra vez ainda a ingrata gravidade jogasse a terra contra o meu corpo inerte, vislumbrei a silhueta de uma pessoa vindo em minha direção.
Quando novamente recobrei a consciência, estava sentado/esparramado a uma mesa nos fundos do que parecia um fast-food. Quatro homens sentavam-se a minha frente, todos jovens (alguns até sem rastro de barba) e todos sérios como coveiros em serviço. Ao notarem meu despertar, assentiram entre si e aquele que parecia o mais inquieto e interessado em falar o fez.


          “Olá, Grégore. Tivemos de trazê-lo para um lugar público porque imaginamos que Eugênio possa te localizar a distância e não podíamos arriscar revelar nossas moradas a ele. Também não temos tempo, então vamos logo ao busílis. Este não é o mundo dele, tampouco o seu, por isso estão tão confusos. Nossa teoria é que muitas mentes sintonizadas e com um pensamento definido compartilhado possam criar um elo entre esses mundos”, parou por um instante, os outros três balançavam vigorosamente a cabeça em concordância, e finalmente concluiu, “Cada um de nós é um universo”.
Estavam dizendo que eu era um alienígena ou algo assim? Eu não podia acreditar. Talvez existissem mesmo essas pessoas que se aproveitam da confusão de uns para humilhá-los mais ainda. Mundo mundo vasto mundo. Mas foi então que me veio a compreensão: “Vocês são Machado de Eugênio!”.
“Somos, sim” respondeu outro, um cara cabeludo de óculos, “e achamos que você é nossa responsabilidade e, de alguma maneira, nosso salvador.”
“Se ao menos pudéssemos te ajudar” disse o alto e introspectivo em tom de lamento.
“...” foi a maneira como se expressou o quarto, de olhos quase nipônicos e reflexivos.
Então o primeiro voltou a falar, movimentando impacientemente os membros, “Nós temos o machado. Afiado como algo pode algum dia estar afiado; a nível atômico, quântico; afiado pra porra. Mas é só você quem pode brandi-lo”.
Talvez tenha sido minha imaginação ouvi-los em uníssono, mas foi essa a maneira que os ouvi dizer “E você tem que matá-los, matá-los todos”.

Continua.


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