Os acrobatas que já não pulam mais



A cortina vibrou.
Lá atrás do picadeiro estava escuro, mas Febo podia ver a sequência das mil cortinas que se abriram no mundo naquele dia. Podia ouvir o barulho dos tecidos correndo nos trilhos com violência, sofrendo da hipnose que emitiam mil estampas sendo arredadas para dar lugar a mil imagens aleatórias.
A cortina se abriu: a plateia estava cansada e bêbada demais para aplaudir alguém além da coleção de pierrôs anões que já haviam feito seu número mais cedo. Das tábuas suspensas, onde todo mundo estava sentado, vinham apenas burburinhos enfumaçados de cigarro para dizer bem-vindo ao Febo, entra aí e te apresenta, pula, balança e cai, porque viemos te ver morrer.
Ele não era o acrobata, era a bicha e todo mundo pensava assim quando o viam se esticar com seu macacão colado de dançarina de balé que não foi feita para brilhar na erudição de um teatro, só dentro duma sufocante tenda de um circo. Para sempre. Nômade e mal interpretado, para sempre.
Quando ele se apresenta nas alturas, na arquibancada os corações não param mais. Porque o tempo que aquilo tudo divertia acabara e hoje as jaulas que mantinham a monga e os elefantes estão mais vazias do que o estômago ulcerado do acrobata Febo e da turma inteira. O único mágico que viera com o talento na família estava preso por desrespeitar aquela lei protetora dos animais. Assim que o mágico tirou a revoada de pombas do ouvido, um cara qualquer com carteirinha de ambientalista carimbada com o certificado da hipocrisia levantou a voz e parou o show.
― But the show must go on, disse o mágico, no que o ambientalista se alterou e exigiu respeito, porque era parte do público e o público era respeitável, público! Mas que nada, foi preso mesmo assim. E o nome do mágico era Apolo, não que fosse regra o nome dos artistas daquele circo serem também de um deus grego, pois Apolo se trata de Febo e Febo equivale a Apolo, assim como Guilherme está para William e Job para Jó. Acontece que a lei da física que diz que peneira de buraco grande não segura água aplica-se também na questão da prisão de um mágico. Mágico não se prende, não senhor. Quem estava na jaula era um ventríloquo com tamanho de gente grande, que falava com o dom da fala que Apolo lhe dera. Ficara lá no canto onde se diz popularmente que o sol é quadrado enquanto o Apolo, gênio acima de mágico, voltara ao circo com a cara nova de alguém que precisa de uma nova identidade. E quando sua mãe, barbada que só, estendeu os braços para o filho que estava livre para desmistificar o mundo, mas voltava ao circo, como se fosse séssil ao mesmo tempo em que era nômade, ela disse:
― Apolo, venha cá, me dá um abraço. Ele disse:
― Não sou mais Apolo, não sou mais desnorteado. Tenho duas extremidades agora, mas o mágico ficou na cadeia. Vou balançar no trapézio e me virar do avesso, porque sou Febo, o acrobata! E todos se espantaram quando notaram que ele tinha levado isso tão seriamente a ponto de não querer mais passear com as mãos dadas às da mocinha de boca vermelha. Vermelhíssima! Ela usava o batom que ganhamos na batalha lambuzada contra a crosta dura das maçãs-do-amor. A menina era bonita, você pode vê-la na arquibancada todas as noites de espetáculo, mesmo nestes dias em que só resta a saudade daqueles outros dias em que ela passeava com Febo e eu não passeava com ninguém.
Ela queria dar um abraço no seu amorzinho, no seu lindo. Aquela roupa de bailarina que ele colocava provocava uma coceira entre suas pernas num lugar em que a malha da calça nunca teve etiqueta. Implorava para o menino que sua outra personalidade voltasse, mas ele dizia e repetia que Apolo e ele eram feito as torres gêmeas e negras num tabuleiro de xadrez, cada uma num polo. E foi assim que começou a queda do acrobata para o chão sem rede de segurança, pois a apaixonada, em seu desespero, foi contar ao ambientalista que na prisão não tinha mágico, tinha uma marionete em seu lugar.
Então, na noite em questão, em que a cortina vibra antes de abrir para a entrada de Febo e alguém no escuro da plateia o chama de bicha, ladrão e maconheiro, observamos que o homofóbico ali é só alguém magoado, é a menina da maçã-do-amor ao lado do protetor dos animais que já sabia da farsa toda, sabia que uma torre era a outra e que elas estavam fodidas. Iam cair, quem visse a cara do menino dentro do macacão saberia, ele estava exausto de não ser aplaudido. Pois subiu a escada, agarrou o balanço e pulou sem que houvesse mãos firmes do outro lado do abismo do trapézio.
Febo caiu, mas já não existia mais para pular de alegria quando seu corpo fez um estrondo no chão e seguiu-se a calmaria dos inúmeros corações silenciosos que pararam na arquibancada. Afinal, o show foi de tirar o fôlego e todos aplaudiram.

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