sou forte, sou por acaso


Teve um dia em que jogamos nossos barcos na enxurrada pensando que eles iam de bueiro em bueiro até chegar numa enseada. Nisso tinha um quê de infância que não queria ir embora nem nunca foi, nem nunca permitiu que a gente admitisse que os barcos de papel viravam a esquina e afundavam, mas nós continuamos. Então, depois que você ficou longe, comecei a reparar que os tijolos de argila bem no muro da minha casa escondiam outros muros estendidos além, tantos muros, tão além, que não restou uma cerquinha lá longe com uma placa dizendo: aqui é o resto do mundo. Só restaram as passagens de labirinto, individuais, estreitas, sufocantes, minha nossa, tenho tanta coisa para falar, te ouço andar do outro lado, sai da sua trincheira e vem pra cá, home is wherever I’m with you, eu não entendo o sistema de eleição dos Estados Unidos, hoje olhei pra alguém que não conheço, que olhou pra mim por muito tempo e a gente ficou puxando um cabo de guerra, porque é muito difícil não desviar os olhos nessa situação, mas um de nós dois tinha que desviar de uma vez por todas antes que a corda arrebentasse ou meus olhos ou os olhos do lado de lá do buraco do muro. Não sei, mais cedo eu estava pensando na história desse cara que colecionava rolhas e o quarto dele tinha milhões de rolhas e elas vazavam sempre que a porta se abria, ou a janela, porque não havia nada para tapar a porta ou a janela, daí ele comprou tijolo e fez cimento com cuspe, construiu um muro na soleira e no parapeito, ficou preso lá dentro e morreu. O cara só morreu porque fechou a vazante das paredes e esqueceu de fechar os gargalos das garrafas de destilado, bebeu tudo, entrou em coma e na solidão da convulsão fez verdade sua morte, mas como esta história é ruim demais eu nunca vou escrevê-la. Vai, faz de conta que ela também morreu na memória deste parágrafo e só tô te contando isso pra você ver que foi daí que eu tirei a ideia de abrir mais um pouco o buraco do muro, como o cara da história nunca vai fazer, pra ver se eu encontro aquele olhar de novo, o do cabo de guerra, sabe? Pois é, talvez eu consiga abrir um buraco um pouco maior, talvez se eu esticar bem a mão eu consiga alcançar a sua, talvez eu até atravesse ou cresça por dentro suficientemente pra notar que só existe meio metro de tijolo e eu ando arrastado no chão, corcunda nato. Afinal esse negócio de muro é só paranoia, se eu quisesse ficar de pé ou se eu pudesse sair daqui de dentro da cápsula da complexidade, teria me levantado.
O muro é tão pequeno, só barra mesmo aqueles barcos de papel que pensávamos de mentirinha que desembocavam no mar e a televisão transmitia que eram parte do lixo que entupia suas bocas-de-lobo. Na verdade, eles viraram a esquina e continuam ali, parados na porra do muro, como nós continuamos. 


e faltam oito anos pra abrirmos a cápsula do tempo!

3 comentários:

  1. olha, se não parar de escrever esses textos bonitos o cara que colecionava rolhas não vai ser o único a morrer. sabe como é, dizem que embriaguez literária faz um mal danado pro fígado.

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  2. Fascinante e simples e talvez por isso fascinante...

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  3. Kaíke, posso falar que eu amei ? Eu amei !

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